O magnífico texto, abaixo reproduzido, é de autoria de Humberto Mariano e foi originalmente publicado no Blog Futebol Arte, este mantido por Ricardo Roca, ambos são amigos e membros integrantes de um grupo, do qual também faço parte, que tem como missão promover a difusão da literatura e de outras formas de expressão cultural e artística do futebol e apoiar a preservação da memória do futebol.
Edmar Junior
O “fim” do tabu
Todo mundo sabe que o mais famoso tabu do futebol brasileiro acabou numa noite de quarta feira, dia 6 de março de 1968, com os gols de Paulo Borges e Flávio. Também sabem da comoção que tomou conta de São Paulo naquela noite e do inédito índice de absenteísmo no trabalho no dia seguinte. Algo em torno de 42,37% segundo pesquisa da FIPE, somente superado pelos 46,57% do dia 14 de Outubro de 1977. No sábado seguinte a romaria para Aparecida do Norte congestionou por dezesseis horas a Via Dutra e fez com que a Arquidiocese local iniciasse o projeto para a construção da nova basílica, temendo uma catástrofe no caso de eles ganharem um título, qualquer que fosse. Graças a Deus, e a intercessão de Nossa Senhora, os nove anos que transcorreram entre um fato e outro foram suficientes para projetar e construir a obra.
O que pouca gente, quase ninguém, sabe é que um grupo de oito “privilegiados” corintianos viveu a mesma emoção quinze meses antes, mais precisamente na noite do dia 17 de Dezembro de 1966. Noite chuvosa de sábado, rodada final do Campeonato Paulista, os dois times sem chances de título, mas os corintianos estavam confiantes que o tabu acabaria naquela noite. Dos 15.422 pagantes, apenas oito eram torcedores do Santos, parentes de Clodoaldo que tinham vindo de Sergipe para vê-lo ficar no banco do Santos, o maior feito já atingido por um jogador sergipano até aquela data.
Mas o que mais dava confiança aos corintianos era que Ele não jogaria. No pior ano de sua carreira estivera contundido na maior parte do ano, perdera a artilharia do campeonato para seu companheiro Toninho Guerreiro, perdera a Copa do Mundo, a Taça Brasil, enfim um ano para esquecer. Do lado corintiano, também pesava a expectativa pela presença de Garrincha; finalmente na quinta feira ele tinha voltado do Rio de Janeiro depois de vinte dias em “tratamento”. Nesse período, segundo ele, não conseguiu comunicar-se com a diretoria e o técnico porque não sabia o número do telefone do clube. Foi perdoado, mas faltou no coletivo da sexta e por isso não foi relacionado. Zezé Moreira foi de Bataglia mesmo.
E para completar, o Santos estava em crise. O velho e bom Lula estava em processo de “fritura”. Aquele seria seu penúltimo jogo como técnico do alvinegro praiano depois de doze anos de títulos e glórias. Caiu atirando. Na preleção antes do coletivo, soltou os cachorros: time acomodado, velho, vivendo do passado, com jogadores que só pensavam em dinheiro e boêmia. Assim preferia sair, e acabou saindo mesmo na terça feira depois de vencer a Prudentina no último jogo do Campeonato. Este jogo tinha sido adiado do meio do campeonato para o Santos dar um pulinho em New York, golear o Benfica por 4 a 0 e recolocar Eusébio no seu devido lugar de melhor jogador ….da Europa, é claro. No quarto gol, o juiz não se aguentou e foi abraçá-Lo. Em seguida, os americanos invadiram o gramado e acabaram com o jogo. Ainda faltavam 24 minutos, mas eles já tinham se dado por satisfeitos.
Voltemos ao Pacaembu e ao jogo que acabaria com o tabu. A última vez que o Corinthians vencera o Santos em jogos do Campeonato Paulista foi em Julho de 1957, o segundo jogo d’Ele em campeonatos paulistas. Até ali já se tinham passado quase dez anos, dezenove jogos com quatorze vitórias do Peixe, sessenta e dois gols, média superior a três por partida. Um castigo interminável e doloroso. Não havia corintiano que não abaixasse a cabeça ao cruzar com um santista. Dava pena ver aqueles rostos amargurados, derrotados na véspera, humilhados, embora não resignados. Teimavam em acreditar que um dia aquilo ia ter fim.
Quando Armando Marques trilou o apito e Fiori abriu as cortinas, a Fiel começou a empurrar o time. Recheado de craques do quilate de Gilson Porto, Clóvis, Ditão. Jair Marinho, Tales e Bataglia, contudo, a grande esperança mosqueteira era Roberto Rivelino, um jovem palmeirense que faria história no Parque São Jorge e na seleção brasileira. O Santos se virava como podia. Sem Ele, sem Carlos Alberto, Mengálvio, Coutinho e Edu, restou ao grande Claudio a missão de manter a escrita. E enquanto pôde ele resistiu. Eram bombas de Rivelino, cabeçadas de Tales, trombadas de Flávio, o diabo. Até que aos 36 minutos do primeiro tempo, a casa caiu. Tales lançou Flávio, que sempre marcava quando errava o chute, errou e o Pacaembu explodiu.
Com a velha categoria, o Santos cozinhou o galo até o intervalo e garantiu o um a zero, o que naquela altura era um grande negócio. Voltou para o segundo tempo, equilibrou o jogo e quando faltavam quinze minutos para acabar Abel e Toninho fizeram a jogada que permitiu a Zito empatar o jogo. Nas arquibancadas, a decepção de sempre. “Puxa vida, logo hoje que o Negão não veio”; “Agora nunca mais”; “ Na próxima, eles vão ver” e, pior de tudo, os falsamente resignados: “ Sem Ele também, não vale a pena ganhar”.
Aos quarenta começou a debandada. Ficaram apenas uns cinco mil corintianos, entre eles a velha Elisa, e os oito parentes do Corró. Aos quarenta e dois, Rivelino lança Tales que, célere, invade a área. Com a classe e a categoria de sempre, o nosso bom reserva Modesto antecipa e desarma, com extrema facilidade, o moço de São Manuel, nas palavras do grande Fiori. Para este, restou a alternativa de jogar-se ao chão. Era só o que Armando Marques esperava para armar mais uma de suas presepadas. Vontade de aparecer; queria ter a honra de ser o juiz da quebra do tabu; eternizar-se nos corações e mentes dos atormentados corintianos. Empinou o bumbum, saltitou até a grande área, esticou o braço, abaixou-se em direção ao gramado, olhou de soslaio para a arquibancada e trilou o apito. Marca do cal. É pênalti,
Naquele tempo jogador não chamava juiz de professor. Muito menos um craque como Mauro Ramos de Oliveira. Foi até Armandinho, enfiou-lhe o dedo na cara e perguntou: “Quer apanhar de novo, seu…………..”? O pulha recuou, chamou uns guardas e manteve a decisão. Nessa altura as arquibancadas estavam enlouquecidas. Quem estava na praça voltou para dentro do estádio. Com os torcedores que voltavam, entraram os ambulantes, os flanelinhas, os policiais de fora do estádio, o pessoal dos ônibus que passavam, os enfermeiros e residentes do HC descendo em desabalada carreira, dois velhinhos em macas carregadas por parentes, as meninas que faziam ponto na calçada da FAAP, uma multidão. Enquanto a polícia continha os jogadores dos Santos, Zezé Moreira reuniu o grupo e fez uma oração, manobra orquestrada por Wadih Helou para dar tempo do Prefeito Faria Lima, notório corintiano, vir de helicóptero de sua casa em Pinheiros até o Pacaembu. Cinco minutos já tinham passado desde a marcação do penalti e o Pacaembu já contava com 42 mil pessoas, entre eles, os oito aterrorizados sergipanos.
Corte para São Miguel Paulista, Vila Nitro Operária, esquina da Avenida São Paulo Rio com Rua Ribeiro dos Santos, Padaria e Panificadora Vasco da Gama, 23 horas e quinze minutos do sábado, 17 de Dezembro de 1966. Oito eufóricos corintianos, colados ao rádio da padaria, aguardam a batida do pênalti. Fiori anuncia que Nair vai bater, Cláudio no centro do gol, ânimos serenados, chegou a hora. Fim de um sofrimento de dez anos, o resgate da dignidade, a alegria incontida, o coração aos pulos, eram como presos que, finalmente, tivessem direito a luz do sol e á liberdade depois de anos de cativeiro. Pediram, então, mais uma rodada de cerveja para os brindes. Trocaram os copos, exigiram taças, tripudiaram em cima do português que os atendia.
Fiori dá uma pausa, respira, pigarreia e anuncia: “Autoriza, Armando Marques. Nair corre e….(silêncio). Acaba a luz na Vila Nitro Operária. O rádio silencia, os corintianos endoidam, o português teme pelas consequências e o breu impera dentro e fora da padaria. Nenhuma vivalma na rua, nenhum radinho de pilha disponível, nada que pudesse acalmar aqueles corações. Passam-se os minutos, cinco, dez, quinze, a luz não volta. Eles não tem intenção de ir para casa. Esperam apenas uma confirmação para começar a festa que deveria varar a madrugada. Pedem mais cerveja, comemoram antecipadamente, outros extasiam-se imaginando assistir o vídeo tape da Tupi, que começa por volta da meia noite. Um exagerou: “ esse timinho acabou, fiquei sabendo que o Barcelona vai comprar o Negão”. Outro gritou “ esse ano é nosso”. Não há nenhuma dúvida entre eles. O sol da liberdade em raios fúlgidos, enfim, raiou.
Passam-se trinta minutos e, finalmente, um ônibus vindo do lado da cidade, para no ponto em frente à padaria. Desce um baixinho, andando devagar, radinho de pilha na mão, mais ou menos uns trinta anos, bigodinho. Alívio geral. Velho conhecido de todos, amigo da maioria, cunhado de um dos corintianos presentes, fanático por futebol, palmeirense até o último fio dos cabelos, mas, sobre e acima de tudo, um anticorintiano como nunca se viu igual. Inventava e espalhava as mais infames e divertidas gozações sobre o sofrimento corintiano desde 1954 e desde o tabu. Jamais pronunciava o nome Corinthians. Substituía por todo e qualquer termo depreciativo, que suas prodigiosas inteligência e memória criavam a cada momento. Não se sabe porque ainda sobrevivia. O natural, franzino como era, é que já tivesse morrido espancado pela imensidão de corintianos que tanto ele atormentava. Talvez fosse o cunhado corintiano, grandalhão de corpo, alma e coração, que lhe garantisse a integridade física, ou talvez, sua infindável simpatia. Não dava para ficar com raiva dele mais de cinco minutos, tamanha simpatia e admiração que sua inteligência despertava nos outros.
Pois bem. Ao vê-lo de longe, os corintianos exultaram. Andando devagar, rádio desligado, acabrunhado, entrou na padaria, não falou com ninguém, sentou e pediu uma cerveja. Os corintianos nem se deram ao trabalho de ir falar com ele; haveria tempo para a desforra. Se ele estava daquele jeito era a prova insofismável de que o Corinthians havia ganhado. Primeiro, a marcação do pênalti aos 42 do segundo tempo, depois essa entrada melancólica, só restava comemorar. “Portuga, mais cerveja, abaixa essas portas, a festa é nossa”.
Mais quinze minutos, o baixinho, vendo a festa, sai de seu canto, vai até os corintianos, dá a mão e os parabéns a cada um deles. Comovido, abraça o cunhado, dá-lhe palmadas nas costas e diz: “vocês mereceram, jogaram melhor, gol legítimo, arbitragem perfeita; paciência, o tabu acabou”. O cunhado enxugou umas lágrimas, retribuiu o abraço, deu uma fungada e pediu humildemente: “Du, posso ver o tape na sua casa”? “Claro, vai ser um prazer, chama a moçada toda, só levem as cervejas e alguns tira-gostos. A minha casa é de vocês, ainda mais num dia de festa como hoje. Eu sei perder, Durão”.
E foram todos para a casa dele. Uma algazarra incrível nos dois quarteirões que separavam a casa da padaria. De uma das casas ouviu se um grito: “santistas de m………., vão se lascar”. Vibraram ainda mais. Devia ser mais um corintiano zoando os santistas. Chegaram, abriram as cervejas, fatiaram a mortadela, o queijo, arrumaram as azeitonas no prato e esperaram. Meia noite, no canal 4 entram Walter Abrahão, Mario Moraes e Ary Silva. Do campo, Ely Coimbra escalou o Santos: Cláudio, Modesto, Mauro, Orlando e Geraldino; Joel Camargo e Zito; Dorval, Lima, Toninho e Abel. Como de hábito, Mário Moraes lamentou a ausência de Sua Excelência, o Senhor Edson Arantes do Nascimento. Do outro lado, Roberto Petri escalava o Corinthians: Marcial Jair Marinho, Ditão, Clóvis e Maciel; Nair e Rivelino; Bataglia, Tales, Flávio e Gilson Porto.
Breves comentários e começa o jogo. Oitenta e sete minutos de festa e alegria na sala. A exibição do Corinthians era notável, dominava completamente o Santos. O gol de Zito de empate foi recebido com risos e gozações. Era só uma questão de a fita rodar. Em quinze minutos tudo estaria acabado.
Quarenta e dois minutos, o pênalti. Todos em pé na sala, a Tupi mostra toda a confusão. Enquanto isso, eles enchem os copos e não percebem alguém saindo sorrateiramente da sala com uma mochila nas costas. Dão-se as mãos os corintianos quando Nair corre para a bola. Bate forte, rasteiro no canto esquerdo, Cláudio salta e encaixa firme a bola. Atônitos, eles não acreditam no que veem. “Mas ainda faltam três minutos, e os acréscimos, é claro que o gol aconteceu depois. O Du não ia estar triste assim à toa”. Ao ouvir este nome, o cunhado se deu conta do que tinha acontecido. Ficaram cinco anos sem se falar.
Humberto Mariano é um ex-pensador brasileiro que, a exemplo de Roberto Carlos, parou de produzir e de pensar no final dos anos 70. De lá pra cá, ganha a vida como economista e burocrata de terceiro escalão, além de frequentar botecos de quinta, as sextas feiras.
O Blog DNA Santástico, na figura de seu mantenedor Edmar Junior, agradece aos amigos Humberto Mariano e Ricardo Roca pela colaboração e autorização deste post.